Casos de dupla parentalidade ainda deságuam na Justiça

Fonte: IBDFAM
05/03/2021
Direito de Família

A dupla parentalidade – ou seja, quando o filho é registrado com duas mães ou dois pais – é uma realidade de milhares de famílias brasileiras, que diz respeito não só às relações homoafetivas, mas também às múltiplas possibilidades de configuração dessa entidade baseada no afeto. O reconhecimento do vínculo parental com pessoas do mesmo gênero ainda encontra dificuldades na via administrativa e chegam com frequência à Justiça, com grande parte das decisões seguindo a égide do respeito à diversidade.

Em meio às dificuldades econômicas, muitos casais que sonham com o projeto parental não podem recorrer às técnicas de reprodução assistida, optando por procedimentos caseiros. Nestes casos, o Poder Judiciário acaba sendo acionado para o reconhecimento dos direitos daquela família. Foi um caso assim, ocorrido no Distrito Federal, que o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM noticiou no início do mês.

Após inseminação caseira, um casal de mulheres conseguiu registrar o filho com os nomes das duas mães após decisão da 3ª Vara da Família de Brasília. Elas haviam sido impedidas de efetuar o procedimento no Cartório de Registro Civil em razão da falta de previsão legal. O juiz considerou a relação de afeição, apreço e afinidade desenvolvida pelo casal que compartilha o projeto parental desde o início da gestação, citando ainda que a maternidade socioafetiva desempenhada pelas duas é incontroversa.

Reprodução assistida

"Se a criança a ser registrada é fruto de reprodução humana assistida heteróloga, temos norma específica do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, o Provimento 63/2017, disciplinando o registro de nascimento estabelecendo a filiação para os autores do projeto parental, ou seja, para a pessoa ou o casal que contratou a técnica", explica Márcia Fidélis Lima, presidente da Comissão de Notários e Registradores do IBDFAM.

No modelo de caso citado pela especialista, não importará se o casal é homoafetivo ou heteroafetivo. "Basta que se apresente os documentos exigidos no ato normativo para que a inscrição da dupla maternidade ou paternidade possa ser efetivada administrativamente, sem intervenção judicial", pontua.

Ela lembra que, além dos documentos ordinariamente apresentados para a lavratura do registro, os pais devem comprovar a contratação da técnica através de uma declaração firmada pelo diretor técnico de clínica credenciada. "Nos casos em que houve a participação de uma voluntária que tenha cedido seu útero para a gestação da criança, é imprescindível que seja apresentado por escrito documento em que a gestante se declare ciente de que a maternidade não lhe será atribuída."

"Contudo, para que se possa valer desse procedimento simplificado, o casal deverá ser assistido por clínicas credenciadas, de acordo com as exigências do Conselho Federal de Medicina - CFM. Por intermédio de uma clínica credenciada, o procedimento é simplificado, pela via exclusivamente extrajudicial", resume a oficiala.

Inseminação caseira

Em situações específicas, como aquelas em que a reprodução é feita por métodos caseiros, ainda se faz necessário recorrer ao Poder Judiciário, como fizeram as mães do Distrito Federal. Segundo Márcia Fidélis, essas técnicas, com uso de seringas, têm sido adotadas porque a assistência médica credenciada tem altos custos, inviabilizando sua contratação a uma parcela da sociedade.

Caberá então ao magistrado analisar a legitimidade do pleito. "Quando os casais se valem de procedimentos informais para a concepção, ainda é obrigatória a participação do Poder Judiciário para que sejam aviadas cautelas eventualmente necessárias à garantia da segurança jurídica", frisa a especialista.

"As peculiaridades de cada caso serão analisadas e documentadas em juízo, para que sejam devidamente observadas. Essa providência traz segurança para as relações de filiação que tenham origem em procedimentos especiais, em prol de toda a família, mas, principalmente, do maior interesse da criança."

Acompanhamento médico dá mais segurança

Sempre que possível, o acompanhamento médico deve ser a opção. Além de questões relacionadas à saúde da gestante, poderão ocorrer divergências entre as partes envolvidas. "A clínica credenciada garante a anonimidade do doador ou doadora de gametas, providencia um contrato que vincula as obrigações dos autores do projeto parental e, ainda, quando necessário o útero em substituição, faz o intermédio entre eles e a gestante."

"Quando o método não atende a essas exigências, ou seja, se a concepção e gestação seguem critérios informais de assistência à reprodução, não há como garantir que essas regras sejam observadas. Essa informalidade pode impedir que seja solucionado eventual conflito que venha ocorrer entre os envolvidos, muitas vezes ao prejuízo da criança", alerta a especialista.

Ela acrescenta: "Eventual identificação do doador ou da doadora do gameta não permite que se cobre dele a ciência de que não poderá reivindicar a relação de parentesco, podendo ocasionar a busca da paternidade ou da maternidade pela ascendência genética. Valer-se do uso do útero de terceira sem a devida garantia de que ela não reivindicará a maternidade traz riscos parecidos já que a Declaração de Nascido Vivo aponta a parturiente como mãe da criança."

"Sem apresentar as provas formais da reprodução assistida, a mulher que cedeu seu útero poderá registrar a criança como sua filha, já que ela pode declarar sozinha a maternidade. Lado outro, pode ocorrer da criança nascer com alguma deficiência ou doença grave, e, sem uma formalização do projeto parental que garanta seu cumprimento pelos contratantes da assistência, pode permitir que se esquivem da responsabilidade da parentalidade, em detrimento da observância obrigatória do maior interesse da criança."

Além das famílias homoafetivas

Nesta semana, o IBDFAM noticiou uma decisão da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP que reconheceu o direito de um homem a incluir o nome da madrasta em sua certidão de nascimento, sem prejuízo do registro da mãe biológica. Enteado e madrasta conviveram por 36 anos, até a morte dela. A relação teve início após o falecimento da mãe biológica do autor da ação, quando ele tinha 16 anos.

A dupla maternidade ou paternidade pode atender além das famílias homoafetivas, como ressalta Márcia Fidélis. "O reconhecimento da pluralidade de origens de vínculos de filiação pelo ordenamento jurídico atual desvinculou a parentalidade da conjugalidade. Somente se fala até hoje em pai e mãe, em duas pessoas na função de pais ou mães, numa dicotomia necessária porque nossa cultura ainda está muito arraigada na consanguinidade do parentesco."

O entendimento da concepção de família, na atualidade, ultrapassa o modelo arraigado às relações entre homem e mulher. "À medida em que a afetividade ganha protagonismo como fundante das relações familiares, não há mais que se falar nessa dicotomia e nem da necessária diversidade de sexos para que se tenha filhos."

Filiação não está necessariamente ligada à configuração conjugal

"O estabelecimento do estado de filiação da pessoa natural não está condicionado à configuração conjugal da família. Portanto, é possível que se tenha dupla maternidade/paternidade sem que haja necessária relação conjugal entre as duas mães ou os dois pais. É possível a coexistência, como mães da esposa e da ex-esposa do pai, por exemplo, em uma relação multiparental em um formato de família reconstituída."

Como frisa a especialista, a multiparentalidade é a realidade de muitas famílias na sociedade contemporânea. "Uma criança registrada apenas com a maternidade estabelecida – em um segundo exemplo – cuja mãe biológica tenha falecido e ela tenha sido criada com a tia, irmã da mãe, pode ter esse vínculo socioafetivo formalizado, tendo duas mães, que, no caso, são irmãs."

"E a vida real vai ganhando seu devido espaço à medida em que o afeto se fortalece como valor jurídico, mostrando que as relações entre as pessoas constroem a si mesmas. Será liberdade? Parafraseando Clarice Lispector: 'Liberdade é pouco, o que desejamos ainda não tem nome'", conclui Márcia Fidélis.


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